segunda-feira, 23 de maio de 2011

MEDIDAS CAUTELARES DE OFÍCIO

Dentre os dispositivos que compõem o Livro III do CPC, talvez o artigo 797 seja o que produz maior dificuldade de interpretação e desencontros entre os escritores. Por isso, sem a intenção de dizermos a última palavra, buscaremos atribuir-lhe um entendimento que reputamos compatível com a teoria geral do processo e com as demais regras de direito cautelar. Nesse dispositivo legal, há a previsão de que “só em casos excepcionais, expressamente autorizados por lei, o juiz determinará medidas cautelares sem ouvir as partes.” Com essa redação o legislador normatizou o poder do magistrado ordenar medidas cautelares "inaudita altera pars", sem pedido e contraditório prévio acerca dos pressupostos dessa espécie de tutela, isto é, de ofício. Ao fazê-lo, o artigo 797 excepciona a regra geral contida no artigo 2º do Código, que proíbe o juiz de prestar a tutela jurisdicional sem que haja requerimento da parte ou interessado, nos casos e formas legais (respectivamente, princípios da inércia da jurisdição e da legalidade das formas). Embora esses dois dispositivos legais sejam aparentemente contrastantes, a conjugação de ambos permite a natural conclusão de que a inércia da jurisdição é a regra geral, excepcionável pelo próprio ordenamento jurídico em situações especiais. Exceções como a do artigo 797 não podem causar espanto ao intérprete porque há casos em que o Código permite ao juiz proceder sem a provocação da parte ou do interessado, assim como ocorre no inventário de ofício (art. 989) e na arrecadação de bens do ausente (art. 1.142). Apesar de o magistrado poder ordenar medidas cautelares de ofício, ele somente as determinará se houver um processo judicial em curso, quando nele atuará incidentalmente diante da iminência do dano. A propósito, é impensável que o juiz esteja autorizado a ordenar medidas de segurança antes de formada a relação processual, o que acabaria por neutralizar o princípio da inércia da jurisdição e distorcer a mensagem revelada no próprio artigo 797, cuja redação pressupõe a existência de um processo. Ademais, ordenações tais romperiam com o princípio do acesso à justiça, que defere aos jurisdicionados o direito de demandar em juízo, não o dever de fazê-lo (CF, art. 5º, XXXV). Assentados esses aspectos, não se pode deixar de reconhecer no artigo 797 um certo pleonasmo quando diz que o juiz poderá determinar medidas cautelares de ofício “só em casos excepcionais, expressamente autorizados por lei.” Ora, se a regra é a inércia da jurisdição e houver no caso concreto autorização legal para a medida cautelar de ofício, ele só pode mesmo ser excepcional. De qualquer modo, ao falar da excepcionalidade das medidas cautelares sem requerimento, parece claro que o legislador pretendeu advertir o magistrado acerca da regra geral da inércia da jurisdição. Também não resta dúvida de que ele se preocupou em evitar a responsabilidade indenitária do Estado por ato do juiz, ciente de que muitas medidas cautelares são hábeis à causação de danos aos jurisdicionados (CF, art. 37, § 6º). Pelo exposto, podemos concluir que o juiz pode ordenar medidas cautelares de ofício, contanto que exista autorização legal expressa para o caso concreto, que a tutela seja necessária e que esteja em curso alguma relação processual. Contudo, resta saber quais são as situações em que essa ordenação judicial é juridicamente possível. Como critério de identificação das medidas cautelares determináveis de ofício, OVÍDIO BAPTISTA propõe a separação das providências de “defesa da jurisdição” daquelas outras de “defesa do direito ameçado” e ensina que as primeiras visam à preservação da seriedade da função jurisdicional, motivo pelo qual podem ser ordenadas sem requerimento da parte e contraditório, ao passo que as medidas de defesa do direito somente são decretáveis se o interessado as requerer, afinal, o magistrado não pode agir "ex officio" no domínio da jurisdição civil. SIDNEY SANCHES exemplifica algumas medidas cautelares decretáveis sem requerimento da parte: 1) O artigo 125 do CPC relaciona os poderes-deveres do magistrado na presidência do processo, dentre eles o de prevenir ou reprimir qualquer ato atentatório à dignidade da justiça como acontece quando ordena a busca e apreensão de autos retidos injustificadamente pela parte e a proíbe de vistá-los fora do cartório. 2) O artigo 266 veda que as partes, o Ministério Público e o próprio juiz pratiquem qualquer ato processual durante a suspensão do processo, mas permite ao magistrado determinar a realização de atos urgentes para evitar dano irreparável ou de difícil reparação. 3) O artigo 588, inciso II, autoriza ao juiz ordenar na execução provisória que o exequente preste caução idônea para que levante depósito em dinheiro ou pratique atos que importem alienação do domínio ou outros dos quais possa resultar dano grave ao executado. 4) O artigo 653 possibilita ao juiz determinar a feitura do arresto pelo oficial de justiça na execução por quantia certa contra devedor solvente quando este não for encontrado para a citação. 5) O artigo 804 prevê que o juiz, ao deferir a medida cautelar liminarmente ou após justificação prévia sem ouvir o réu, pode determinar que o requerente preste caução real ou fidejussória de ressarcir os danos que o requerido venha a sofrer. 6) O parágrafo único do artigo 1.000 atribui ao juiz o poder de nomear outro inventariante, observada a preferência legal, quando acolher a reclamação contra aquele que até então desempenhava o encargo. 7) Conforme o artigo 1.001, o juiz poderá mandar reservar em poder do inventariante o quinhão do herdeiro excluído se não admiti-lo no inventário e remetê-lo às vias ordinárias. 8) O parágrafo único do artigo 1.018 diz que o juiz poderá mandar reservar em poder do inventariante bens suficientes para pagar o credor quando as partes do inventário não concordarem com o pedido de pagamento e o credor for remetido às vias ordinárias. Embora o juiz possa ordenar de ofício várias providências cautelares tendentes à defesa da jurisdição, fica fácil ver que o artigo 797 é ostensivamente cerceador da atividade jurisdicional. Ao impor a excepcionalidade das medidas cautelares de ofício e exigir expressa autorização legal para ordená-las, esse dispositivo legal acaba nutrindo um antigo fator ideológico que orientou certas doutrinas processualistas retrógradas, responsáveis por reduzir o magistrado a um mero espectador da lide.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1. MACIEL, Daniel Baggio. Processo Cautelar. São Paulo: Editora Boreal, 2012.
2. SILVA, Ovídio de Araújo Baptista da. Do Processo Cautelar. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009.
3. SANCHES, Sidney. O poder geral de cautela do juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978.

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